Tolerância Zero, por Dora Kramer

A intolerância está em toda parte. Na internet chegou a níveis insuportáveis. Nas ruas manifestações abrigam pistoleiros de aluguel. A presidente da República reage a críticas com termos de vulgaridade incompatível com o cargo, desatenta ao fato de que reeleição rima com reputação.

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Na Praça dos Três Poderes os sem-terra tentam invadir o Supremo Tribunal Federal em conflito cujo saldo foi de 30 feridos, oito deles em estado grave. A oposição acorda da letargia e vai ao ataque, enquanto na base governista a revolta se avoluma e no tradicionalmente submisso setor empresarial a grita é diária e cada vez mais contundente.

À atmosfera ruim acrescenta-se o imprevisível: o rumo da economia, o risco de a Copa do Mundo se transformar num presente de grego e uma campanha eleitoral que será tão mais acirrada e conturbada quanto maior for a redução do favoritismo da presidente Dilma Rousseff. Com isso, o aumento da probabilidade de o PT se ver em via de voltar à planície.

A tensão aproxima-se do clímax, mas não surgiu de repente nem nasceu por geração espontânea. É filha legítima da dinâmica beligerante que o PT imprimiu ao seu modo de governar, tendo Luiz Inácio da Silva como o comandante em chefe.

O ato de confraternização em que Lula vestiu o boné do MST logo no início de seu primeiro governo soou como um aval do então presidente às ações do movimento. Raras as que não tinham caráter violento. Quando não de agressão física, de ofensa ao direito de propriedade consagrado pela Constituição.

A sucessora agora repete o ato de fiança aos renitentes infratores da lei quando os recebe em Palácio no dia seguinte à promoção de um conflito ali mesmo às portas do Planalto. A motivação? Reatar o diálogo com o MST, como se fosse conversa o objetivo de quem invade, depreda e destrói laboratórios de pesquisa.

Dilma retoma, assim, a mecânica conflituosa que Lula resumiu na expressão “nós contra eles” ao dividir o País entre apoiadores patriotas e críticos conspiradores.

Não há, pela lógica do governo, opositores. Há inimigos a serem dizimados. O exemplo “de cima” espalhou-se pirâmide social abaixo, contaminou os oposicionistas igualmente enraivecidos e fez da tolerância artigo em extinção.

A ausência de civilidade se generalizou. Não se trocam ideias, altercam-se insultos.

Sabem o senhor e a senhora do que anda precisando nosso País? Uma mudança de hábitos. Por exemplo, competência e honestidade são valores a serem bem pesados e medidos na hora da escolha de governantes.

Mas se a esses atributos acrescentarmos a familiaridade com bons modos e respeito ao melhor da língua portuguesa, podemos contar com a expectativa do retorno a um País senão ilusoriamente cordial, ao menos minimamente civilizado.

Meia-trava. O voto aberto para cassações de mandatos de parlamentares é providência merecedora de todas as homenagens recebidas. Convém, contudo, confiar desconfiando.

Levar em conta o outro lado da moeda e aguardar para conferir se não vai diminuir consideravelmente o número de casos de pedidos de punição por quebra de decoro parlamentar levados ao Conselho de Ética, que chegarão ao plenário.

Ou, por outra: como o voto no conselho também é aberto, o travamento pode se dar nas Mesas Diretoras da Câmara ou do Senado.

As bancadas dos partidos também se esforçarão para impedir que seus deputados e senadores sejam alvos de processos de cassação. É uma forma de o Congresso se proteger sem abrir mão do corporativismo.

Militância. A se aceitar a versão do governo de que os críticos à condução do País se dividem entre pessimistas e oposicionistas, fica a dúvida sobre a posição do banco central americano.

Se enquadrado na categoria dos pessimistas, não fica claro qual o interesse do negativismo. Classificados no grupo dos eleitoralmente engajados, ficam abertas as apostas sobre o número de eleitores dispostos a votar sob orientação de Mrs. Janet Yellen, presidente do Federal Reserve.

Leia o original deste post no site do Estadão

A bondade dos assassinos, por Gilherme Fiúza

O Brasil bonzinho assassinou o cinegrafista Santiago Andrade. Não foi outro o criminoso. Quem matou Santiago foi esse Brasil envernizado de bondade e infernizado de hipocrisia. Nenhum débil mental mascarado poderia ter matado Santiago sem a cumplicidade desse monstro.

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A herança maldita da Primavera Burra foi apontada exaustivamente neste espaço. Os bem-pensantes e os demagogos — hoje praticamente indiscerníveis — continuaram matraqueando que os políticos precisavam ouvir “o recado das ruas”. Mentira. Não houve recado nenhum. Não há uma mísera mensagem aproveitável daquele carnaval cívico, onde multidões exuberantes marcharam contra tudo e contra nada — na mais patética perda de oportunidade política na era do Império do Oprimido.

É claro que esse heroísmo imaginário das passeatas não poderia acabar bem. Qualquer bando de almas penadas que fechava uma rua podia ser aplaudido pela sociedade engarrafada. “Desculpem o transtorno, estamos mudando o Brasil”, diziam os revolucionários de videogame. Mudando o Brasil para onde? Para o Afeganistão?

Ninguém perguntou. E a natureza não perdoa: onde não há luz, há treva. Rapidamente, o espaço sacralizado da revolução sem cabeça foi tomado pelo obscurantismo. E o Brasil começou a matar Santiago Andrade quando se permitiu ficar na dúvida sobre o que fazer diante dos boçais mascarados e seus chiliques medievais. Ou melhor: a parte mais bondosa e solidária desse Brasil não ficou na dúvida. Criou um movimento pela libertação dos detidos nas arruaças, black blocs e idiotas associados.

Deputados bonzinhos, intelectuais do bem e artistas antenados gritaram — alto — pela liberdade dos presos em manifestações. Não há artefato mais letal do que a bondade prenhe de ignorância e flacidez moral. E os comandantes da segurança pública, intoxicados pelo arrastão populista, passaram a declarar que “a polícia não está preparada para esse novo tipo de manifestação”. Um escárnio. A barbárie nunca foi tratada com tanto carinho.

Ora, o que se faz com criminosos que saem pelas ruas destruindo o patrimônio público e privado, sitiando cidadãos e atentando contra a sua integridade física? Prende-se. Depois processa-se, julga-se e condena-se. Com as leis que estão aí, com o aparato judicial e policial que está aí, sem um segundo de conversa fiada sobre novos tempos e nova boçalidade. Esse Brasil progressista que matou Santiago se permitiu hesitar diante da afronta ao estado de direito. Confundiu atentado com protesto, e resolveu (embora jamais vá confessar isso) relativizar a violência. Assassino.

Os criminosos que explodiram o crânio do cinegrafista foram identificados sem dificuldade, e estão presos. Mas eles mesmos e seus coleguinhas de terror se cansaram de protagonizar atos igualmente letais, fartamente filmados e fotografados — e puderam voltar tranquilamente para o Facebook e combinar o próximo programinha. Isso porque a sociedade civilizada cismou que não sabe combater “esse novo tipo de manifestação”. A mãe do sujeito que disparou contra Santiago, assustada, não sabia que tinha um criminoso em casa. O Brasil escondeu isso dela.

Quem se meteu a investigar os computadores dos covardes mascarados, chegando a deter alguns dos articuladores desse câncer, foi bombardeado pelos progressistas nas redes sociais. E lá ia o Brasil discutir se pode ou não pode condenar os facínoras ideológicos, deixando as mamães sem uma notícia decente de quem eram os seus pimpolhos homicidas.

Brasil, explique isso agora aos filhos de Santiago.

Não, ninguém vai explicar nada. Já estão chovendo teorias sobre o que é terrorismo, o que é black bloc, que reformas devem ser propostas ao Congresso Nacional (só rindo). Daqui a pouco o irrevogável Mercadante propõe um “plebiscito popular”, e o país volta tranquilamente à sua letargia assassina. Por falar em assassinato, os diplomatas do MST deixaram dez policiais gravemente feridos em Brasília. O Brasil está esperando um deles morrer para se horrorizar.

E o que aconteceu com os agressores? Foram recebidos em seguida por Dilma Rousseff no palácio, para um bate-papo de uma hora sobre reforma agrária. O que você está esperando para pegar sua borduna e ir atrás do que é seu?

Mas vá logo, porque o que é seu está sendo devorado rapidamente pelos amigos do povo — esses que a Primavera Burra não viu. Santiago morreu cobrindo um suposto protesto contra aumento das passagens de ônibus, e não se viu um único revolucionário ninja apontando sua revolta contra a usina de inflação do governo popular S.A. E Dilma pode ir ao aniversário do PT apoiar os mensaleiros presos — numa boa, sem nem um herói das ruas para vaiá-la na saída.

Santiago não teve sorte. Quem tem sorte no país dele é Delúbio Soares, que arrecada pela internet R$ 1 milhão em uma semana — livre de impostos e de covardes mascarados.

‘Cria cuervos que te sacarán los ojos’, por Sandro Vaia

sandrovaiaNão é preciso ter visto o filme de Carlos Saura para entender o significado da célebre expressão espanhola. O rojão na cabeça que matou o cinegrafista Santiago Andrade da TV Bandeirantes durante um distúrbio no Rio é o olho arrancado por um corvo criado, alimentado, paparicado e incentivado por boa parte do pensamento político que imagina construir uma sociedade perfeita cheia de fadas Sininho e de rios de leite e mel, onde a justiça social estará disponível nas prateleiras dos supermercados a preços de liquidação.

Não importa se o morteiro foi disparado por 150 reais. Há assassinatos mais baratos do que esse disponíveis no mercado. Importa é o caldo da cultura que criou assassinos-vítimas que aparecem com cara de Dr. Jeckyll nos seus gestos de confissão e arrependimento e são fotografados em ação no auge de sua monstruosa transfiguração de Mr. Hyde.

Se, além do curling, houvesse na olimpíada russa de inverno que transcorre em Sochi a modalidade de pisar em ovos, a imprensa, as autoridades, os políticos e o governo brasileiro criariam um escrete imbatível. Pede-se uma lei contra o terrorismo, mas terrorismo não é. E se terrorismo for, como não enquadrar os não muito amigáveis manifestantes do MST, que ocuparam a praça dos Três Poderes, tentaram invadir o prédio do Supremo e entraram em combate com policiais militares?

Mas não se pode criminalizar os movimentos sociais, reza a cartilha do poder. Por isso, prudentemente o ministro da Justiça guardou em sua gaveta um ante-projeto do secretário de segurança do Rio, Mauro Beltrame, prevendo punições para manifestações violentas. Como se não bastasse, representantes do pacífico MST, cujo líder José Pedro Stédile chamou o governo Dilma de “bundão” em questões de reforma agrária uma semana antes, foram recebidos e afagados pela própria presidente, depois de ferir 30 policiais nos choques do dia anterior. Mas se o movimento for contra a Copa do Mundo, não será mais movimento social, mas pode ser enquadrado como terrorismo, conforme um projeto de lei que está atravancado em alguma gaveta do Congresso Nacional.

A confusão conceitual se instalou na seara do politicamente correto, e os concorrentes da maratona de pisar em ovos, não sabem mais pra que lado atirar: os pobres meninos desamparados da periferia que atiram rojões a esmo são vítimas da sociedade ou da exploração de políticos inescrupulosos que pagam pela sua violência? O diabo é que todos dizem querer uma sociedade mais justa e em nome disso são capazes de pregar e acreditar que a justiça está em desmoralizar o Poder Judiciário porque condenou correligionários por corrupção ou em escrever que o “superávit primário é uma invenção diabólica do capitalismo para explorar os povos”.

Quem cria esses corvos? E os olhos de quem eles comerão?

Sandro Vaia é jornalista. Foi repórter, redator e editor do Jornal da Tarde, diretor de Redação da revista Afinal, diretor de Informação da Agência Estado e diretor de Redação de “O Estado de S.Paulo”. É autor do livro “A Ilha Roubada”, (editora Barcarolla) sobre a blogueira cubana Yoani Sanchez e “Armênio Guedes, Sereno Guerreito da Liberdade”(editora Barcarolla). E.mail: svaia@uol.com.br

Posto publicado originalmente no Blog do Noblat

A morte e a rua, por Bruno Torturra

brunotorturraQuero falar da penúltima transmissão que fiz pela Mídia Ninja.
Foi dia 25 de julho de 2013, em um dia que ainda considero fundamental, e pouco relembrado, na inflexão da narrativa e dos caminhos que os protestos tomaram desde então.

Era para ser um ato paulistano em solidariedade aos cariocas. São Paulo adensava o coro do “Fora Cabral” e da dúvida nacional “Onde está Amarildo?”, semanas antes da comprovação de que policiais o mataram. Comecei o streaming no vão livre do MASP e segui pela Paulista sentido Paraíso. Nos primeiros 50 metros da caminhada, um impasse claro. Manifestantes pintados em verde e amarelo, exaltando o nome de Joaquim Barbosa e palavras de ordem anti-corrupção. E os Black Blocs que chegaram em peso, densos, prontos para a ação.

“Sem vandalismo!”, gritava o primeiro grupo.
“Sem moralismo!”, gritava o segundo enquanto já estouravam as primeiras vidraças de bancos e alguns relógios públicos.

Os verde-amarelos se retiraram resignados. Vi e transmiti a imagem da PM se retirando da frente de um banco Itaú para que o Black Block agisse. Assim como se retirou da Paulista como um todo. Para voltar apenas na 23 de Maio, em frente ao CCSP, quando o Black Bloc incendiava um carro da Rede Record.

Apenas uma viatura apareceu. Dois policiais militares chegaram por trás da manifestação para tentar conter o grupo que, a esse ponto, tentava virar o carro já em chamas por dentro. O Black Bloc ameaçou partir para cima dos policiais. Um deles sacou seu revólver. Manteve-o à mostra.

Eu estava entre a PM e o Black Bloc. Achei prudente sair dali, e me colocar para trás da arma sacada do policia. Foi quando, eu de costas para o Black Bloc, zuniu um paralelepípedo.
Passou a centímetros da minha cabeça antes da cair no chão. Tive a instantânea consciência de que por centímetros eu escapei de um ferimento grave, de uma sequela para a vida toda, da morte, talvez…

Até aquele dia eu tinha como regra não usar capacete. Não queria me diferenciar dos demais cidadãos, não queria me tornar um alvo preferencial de policiais que poderiam me ver como alguém “esperando bala”. Mudei de ideia.

Fiz de capacete minha última transmissão pela Mídia Ninja, no começo de agosto, em um novo protesto em que os Black Blocs protagonizaram. Mais bancos quebrados, mais bombas de gás e balas de borracha da PM disparadas a esmo. Mais acirramento e desejo de conflito de ambas as partes.

Na rua, poucos veículos de comunicação. Entre eles a BAND.
Motolinks, cinegrafistas e Fábio Pannunzio como repórter.
Na Brigadeiro Luiz Antônio, quase entrada para a Paulista, vi, do meu lado, garotos derrubando um dos motoqueiros da emissora. Poderia ter sido linchado, não fosse a intervenção pronta de outros manifestantes que os dissuadiram. Cheguei a ajudar o rapaz a se erguer e, juntos, lamentamos a violência.
Já na Paulista, fui eu o agredido verbalmente. Eu seria um petista disfarçado, a Mídia Ninja seria um projeto de alguma forma governista.

Metros adiante, novo tumulto. Um grupo de Black Blocs cercou Fábio Pannunzio e ameaçava o agredir fisicamente. Ele, calmo e articulado, dizia entender a “dívida histórica” que a grande mídia tinha com o povo. Mas ressaltava que a resposta não poderia ser agressão física, autoritarismo, uma espécie de fascismo que ele identificava na supressão da liberdade de imprensa na rua.

Junto com alguns manifestantes, ajudei a dissuadir o grupo que quase agrediu, de novo, a reportagem da BAND.
Foi meu último streaming de rua.

Nunca mais voltei a cobrir as ruas em São Paulo.
Um pouco pelo medo, pela irracionalidade de ambos os lados. Boa parte pelo gás lacrimogêneo que, a esse ponto, já me causava efeitos prolongados no agravamento da minha asma.
E muito pela falta de interesse no cenário que vi diante de mim.
A violência estava esvaziando o futuro das manifestações e acirrando discursos fora delas.
Depois veio o Roda Viva, o furacão pessoal e profissional que me distanciou ainda mais da cobertura, do tempo real, da própria demanda da Mídia Ninja. E me fez repensar alguns de meus caminhos e propósitos.

7 meses que já parecem uma vida. Mas nos quais, todo dia, me lembro daquele revólver. Daquele paralelepípedo.

A morte de Santiago Andrade é uma tragédia. Antes, e mais importante, pela morte de um homem, pai, marido, filho… A dor e o vazio que transcende política ou debates.
E, depois e secundário, tragédia pelo que representa dentro do histórico, estranho e instável processo desencadeado a partir de junho. Que começou vitorioso e exuberante ao impedir o aumento da tarifa de ônibus. E que encontra seu episódio mais triste agora, quando a tarifa, quem diria, volta a ser demanda no Rio de Janeiro.

A morte de Santiago é também uma tragédia quase anunciada. Fruto de meses de acirramento, de discursos cada vez mais simplistas e inflamados. Da inteligência que definha em um ambiente de guerra física, política, cultural. Da obsolescência do debate em prol do bate boca. Da polícia que vai se tornando milícia sem comando. Dos movimentos que vão se tornando guerrilha sem projeto. Das ideologias cristalizadas em forma de cinismo.

Manifestantes mataram um homem. Poderia ter sido a polícia. Como quase sempre, e vezes demais, foi. Poderia ter sido um policial o morto. Poderia ter sido um pedestre alheio aos protestos. Poderia ter sido um manifestante com ou sem máscara. Foi um cinegrafista. E isso também quer dizer algo.
Pois morreu alguém que estava lá não como manifestante, não como policial, nem como desavisado.
Mas como alguém cuja ofício era, bravamente, ser nossos olhos na rua.

A morte de Santiago nos faz mais cegos.

 

Visite o texto original no Facebook de Bruno Torturra

Muita fumaça e pouco fogo, por Nelson Motta

marijuana

Nelson Motta, O Globo, no Blog do Noblat

Em Barcelona, já são mais de 400 clubes legalizados, onde a inscrição custa dez euros e o sócio pode comprar até 80 gramas por mês de diversas qualidades de maconhas orgânicas, produzidas por pequenos agricultores autorizados.

Está ficando banal, todo dia se tem noticia de mais um lugar em que o tabu está sendo quebrado, além dos 20 estados americanos que já permitem o “uso medicinal” e dos dois que liberaram geral, da estatização no Uruguai, da bem-sucedida descriminalização portuguesa…

Mudou muita coisa e, ao mesmo tempo, não mudou nada na vida desses lugares e de seus cidadãos. As pessoas não estão saindo enlouquecidas pelas ruas, não há hordas de doidões invadindo lanchonetes em busca de laricas, os funcionários não estão dormindo nos escritórios, a criminalidade e a violência nem aumentaram e nem diminuíram, as famílias não estão se sentindo ameaçadas, a polícia tem mais o que fazer do que perseguir cidadãos honestos e pacíficos que gostam de fumar um baseado.

Um golpe mortal no tráfico e no crime organizado? Nem chapado alguém pode acreditar nisso. O tráfico de verdade, o definitivo e invencível, faz fortunas e milhares de mortos com cocaína, crack, heroína, ecstasy e uma infinidade de novas drogas sintéticas e quase invisíveis, que dão muito mais lucro com muito menos risco do que a volumosa e olorosa maconha.

Diante do mercado milionário de analgésicos tarja preta, que já tem seis milhões de dependentes nos Estados Unidos, o tráfico de marijuana virou coisa de pobre, do passado.

O mais triste é pensar nos trilhões de dólares torrados, no tempo, no trabalho e nas vidas perdidas, nas incontáveis pessoas de bem que sofreram o diabo nas cadeias por alguns baseados, nos que se tornaram bandidos e marginais, na trágica inutilidade de tudo isso. Tanto barulho por nada, por um bagulho.

Enquanto isso, no Brasil, onde os consumidores dizem que se fuma uma das piores e mais caras maconhas do mundo, produzida no Paraguai e distribuída pelas facções do crime organizado, o governo e o Congresso vão enrolando, a polícia vai apertando e continuamos queimando tempo e dinheiro.

Diante do mercado milionário de analgésicos tarja preta, que já tem seis milhões de dependentes nos Estados Unidos, o tráfico de marijuana virou coisa de pobre.

via Muita fumaça e pouco fogo, por Nelson Motta – Ricardo Noblat: O Globo.

Augusto Nunes: STF estendeu a mão aos quadrilheiros

augustonunes“Da maneira que está sendo veiculado, dá a impressão que o acolhimento vai representar absolvição ou redução de pena automaticamente, e não é absolutamente nada disso”, queixou-se Celso de Mello no domingo ao repórter Severino Motta, da Folha, com quem conversou enquanto tomava café com a filha numa livraria de Brasília. Nesta quarta-feira, ao votar pelo acolhimento dos votos infringentes, o decano do Supremo Tribunal Federal caprichou por mais de duas horas na pose de quem não estava inocentando ninguém. Terminada a maratona retórica, tornara  inevitável a absolvição, daqui a alguns meses, de todos os condenados por formação de quadrilha no julgamento do mensalão.

Nas sessões do ano passado, os ministros Ricardo Lewandowski, Dias Toffoli, Cármen Lúcia e Rosa Weber não conseguiram enxergar uma quadrilha onde Celso de Mello, em agosto de 2012, viu com nitidez o mais descarado ajuntamento de quadrilheiros que já contemplara em 43 anos nos tribunais. Mas o mesmo Celso de Mello, constatou-se nesta tarde, não consegue ver nada de mais em achar que todo réu inocentado por quatro ministros do STF pode valer-se do embargo infringente para ser julgado de novo.

Julgado e, no caso, absolvido por um Supremo espertamente modificado pela infiltração de duas togas escaladas para socorrer companheiros em apuros. Com a chegada de Teori Zavaschi e Roberto Barroso, os quatro viraram seis e a minoria virou maioria. Assim, é mera questão de tempo o parto oficial do mais recente monstrengo jurídico do Brasil lulopetista: os quadrilheiros que, embora ajam em conjunto e continuadamente, não formam uma quadrilha. Os mensaleiros, portanto, são bandoleiros sem bando.

Se não houve quadrilha, tampouco pode existir um chefe de quadrilha. Assim, José Dirceu será oficialmente exonerado do cargo que exerceu enquanto chefiava a Casa Civil do governo Lula. Embora condenado por corrupção ativa (e sem direito a embargo infringente), o guerrilheiro de festim jamais se livrará do estigma perpétuo. Mas é um consolo e tanto saber que acabou de livrar-se da prisão em regime fechado. Na hipótese menos branda, passará alguns meses dormindo na cadeia (e pecando em paz durante o dia). Ao prorrogar a velharia com nome de produto de limpeza, Celso de Mello decidiu que os votos dos quatro ministros da defesa valem mais que a opinião vencedora dos seis que condenaram os quadrilheiros (e permitiram que 70% dos brasileiros sonhassem com o começo do fim da corrupção impune).

Para proteger um zumbi regimental, o mais antigo dos juízes  deixou a nação exposta aos inimigos do Estado de Direito. Se tivesse socorrido a democracia ameaçada, Celso de Mello mereceria ter o nome eternizado em praças e avenidas em todo o país. Por ter estendido a mão aos criminosos, talvez tenha perdido até a chance de ser nome de rua em Tatuí, a cidade paulista onde nasceu, cresceu e pretende desfrutar da melancólica aposentadoria reservada a todo aquele que poderia ter sido e não foi.

(Por Augusto Nunes)

Leia a íntegra no Blog do Augusto Nunes.

Lenio Streck: “não cabem embargos infringentes no STF”

leniostreckPerguntas e respostas
Não há respostas antes das perguntas. Trata-se de uma máxima da hermenêutica. Por isso, a resposta antecipada acerca do cabimento dos embargos infringentes em ação penal originária no âmbito do Supremo Tribunal Federal parecia esgotar a matéria. Assim, quando a Folha de S.Paulo trouxe a afirmação de que, em caso de condenação dos acusados na AP 470 (mensalão), estes ingressarão com o Recurso denominado “embargos infringentes”, com base no Regimento Interno do STF, por pouco não sucumbi à tese.

Desse modo, segui outra máxima da hermenêutica, que é a de desconfiar de qualquer certeza. Não há jogo jogado. Se, como acredito, há sempre uma resposta adequada a Constituição — o que implica dizer que há respostas mais corretas que outras ou, até mesmo, uma correta e outra incorreta – a obrigação é a de revolver o chão linguístico que sustenta uma determinada tradição e, a partir dali, reconstruir a história institucional do instituto. É esse o trabalho a ser feito. Ao mesmo tempo, advirto que estou levantando a questão por amor ao debate e a Constituição, no mesmo espírito que moveu o estimado e ilustre Luiz Flávio Gomes a trazer à colação a possibilidade de nulidade do julgamento em face de precedente da Corte Interamericana (leia aqui). Não vou discutir, agora, a tese de Luiz Flávio. Pretendo, neste momento, (re)discutir os embargos infringentes.

Com efeito, escrevi, recentemente, no artigo O STF e o Pomo de Ouro (ler aqui), que é necessário que sejamos um tanto quanto ortodoxos em matéria constitucional. E é exatamente por isso que trago à baila o debate acerca do cabimento (ou não) dos embargos infringentes no caso de julgamento definitivo do STF como instância originária.

O RISTF
Corro para explicar. O RISTF, anterior a Constituição de 1988, estabelece, no artigo 333, o cabimento de embargos infringentes nos casos de procedência de ação penal, desde que haja quatro votos favoráveis à tese vencida. Em síntese, é o que diz o RISTF. Simples. Fácil de entender.

Mas, então, qual é o problema? Há algo de intrigante nisso? Aparentemente, a questão estaria resolvida pela posição que o STF assumiu no julgamento do (AI 727.503-AgR-ED-EDv-AgR-ED, assim ementado:

Não se mostram suscetíveis de conhecimento os embargos de divergência nos casos em que aquele que deles se utiliza descumpre a determinação contida no art. 331 do RISTF. A utilização dos embargos de divergência impõe que o embargante demonstre, cabalmente, a existência de dissídio interpretativo, expondo, de modo fundamentado, as circunstâncias que identificam ou que tornam assemelhados os casos em confronto, para fins de verificação da relação de pertinência que deve necessariamente existir entre o tema versado no acórdão embargado e a controvérsia veiculada nos paradigmas de confronto. (…) O STF, sob a égide da Carta Política de 1969 (art. 119, § 3º, c), dispunha de competência normativa primária para, em sede meramente regimental, formular normas de direito processual concernentes ao processo e ao julgamento dos feitos de sua competência originária ou recursal. Com a superveniência da Constituição de 1988, operou-se a recepção de tais preceitos regimentais, que passaram a ostentar força e eficácia de norma legal (RTJ 147/1010 – RTJ 151/278), revestindo-se, por isso mesmo, de plena legitimidade constitucional a exigência de pertinente confronto analítico entre os acórdãos postos em cotejo (RISTF, art. 331).” (AI 727.503-AgR-ED-EDv-AgR-ED, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 10-11-2011, Plenário, DJE de 6-12-2011.)

No caso objeto do referido AI 727.503 – AgR-ED-EDv-AgR-ED, disse o STF que as normas regimentais de direito processual, produzidas sob a égide da Constituição anterior (1967-1969), foram recepcionadas pela atual Constituição (Art. 96. Compete privativamente: I – aos tribunais: a) eleger seus órgãos diretivos e elaborar seus regimentos internos, com observância das normas de processo e das garantias processuais das partes, dispondo sobre a competência e o funcionamento dos respectivos órgãos jurisdicionais e administrativos). Pronto. Isso encerraria a discussão. Afinal, o art. 333 do RISTF que estabelece o “recurso” dos embargos infringentes, quando existirem quatro votos favoráveis ao réu, valeria como norma processual.

Tão simples, assim?
Penso, no entanto, que a questão não é tão singela. A decisão do STF se referiu a um caso determinado. Não tratava de embargos infringentes (art. 333 do RISTF). E a assertiva da recepção tem limites, porque deve ser lida no sentido de que “essa recepção não se sustenta quando o legislador pós-Constituição de 1988 estabelece legislação que trata a matéria de forma diferente daquela tratada no Regimento Interno”. Caso contrário, o Regimento Interno estaria blindado a qualquer alteração legislativa ou ainda se correria o risco de conferir ao STF o mesmo poder legiferante que possui a União, uma vez que ele estaria autorizado a legislar sobre matéria processual contrariando, assim, o que dispõe o inc. I do art. 22 da CF.

Aliás, esse Acórdão do STF deve ser lido em conjunto com outros do mesmo Supremo. Por exemplo, “O espaço normativo dos regimentos internos dos tribunais é expressão da garantia constitucional de sua autonomia orgânico-administrativa (art. 96, I, a, CF/1988), compreensiva da ‘independência na estruturação e funcionamento de seus órgãos’.” (MS 28.447, Rel. Min. Dias Toffoli, julgamento em 25-8-2011, Plenário, DJE de 23-11-2011.) Vide: ADI 1.152-MC, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 10-11-1994, Plenário, DJ de 3-2-1995.

Ainda:

“Com o advento da CF de 1988, delimitou-se, de forma mais criteriosa, o campo de regulamentação das leis e o dos regimentos internos dos tribunais, cabendo a estes últimos o respeito à reserva de lei federal para a edição de regras de natureza processual (CF, art. 22, I), bem como às garantias processuais das partes, ‘dispondo sobre a competência e o funcionamento dos respectivos órgãos jurisdicionais e administrativos’ (CF, art. 96, I, a). São normas de direito processual as relativas às garantias do contraditório, do devido processo legal, dos poderes, direitos e ônus que constituem a relação processual, como também as normas que regulem os atos destinados a realizar a causa finalis da jurisdição. (…) (ADI 2.970, Rel. Min. Ellen Gracie, julgamento em 20-4-2006, Plenário, DJ de 12-5-2006.)

Ou, talvez

“Em matéria processual prevalece a lei, no que tange ao funcionamento dos tribunais o regimento interno prepondera. Constituição, art. 5º, LIV e LV, e 96, I, a. Relevância jurídica da questão: precedente do STF e resolução do Senado Federal. Razoabilidade da suspensão cautelar de norma que alterou a ordem dos julgamentos, que é deferida até o julgamento da ação direta.” (ADI 1.105-MC, Rel. Min. Paulo Brossard, julgamento em 3-8-1994, Plenário, DJ de 27-4-2001.)

Ou

Portanto, em face da atual Carta Magna, os tribunais têm amplo poder de dispor, em seus regimentos internos, sobre a competência de seus órgãos jurisdicionais, desde que respeitadas as regras de processo e os direitos processuais das partes.” (HC 74.190, Rel. Min. Moreira Alves, julgamento em 15-10-1996, Primeira Turma, DJ de 7-3-1997.)

Veja-se: desde que respeitadas as regras de processo…!

Não se interpreta por partes. Em termos hermenêuticos, vai-se do todo para a parte e da parte para o todo, formando-se, assim, o hermeneutische Zirkel (círculo hermenêutico). Texto é contexto. O RISTF só existe no contexto do campo significativo que emana da Constituição. Nesse sentido, parece que a pá de cal na discussão pode estar na quase desconhecida ADI 1289, pela qual o STF entendeu o cabimento de embargos infringentes em ação direta de inconstitucionalidade.

RISTF v. Leis
Qual era o case nessa ADI 1289? Tratava-se de uma ADI ajuizada antes da entrada em vigor da Lei 9.868/99. Mas qual é a importância disso? Ai é que está. O STF (ADI 1591) admitia a interposição de embargos infringentes em ADI até o advento da Lei 9.868. Como essa lei não previu a hipótese de embargos infringentes, o STF passou a não mais os admitir. Só admitiu embargos infringentes – como é o caso da ADI 1289 – nas hipóteses que diziam respeito ao espaço temporal anterior à Lei 9.868.

Assim, é possível dizer que, nesse contexto, se o STF considerou não recepcionado (ou revogado) o RI (no caso, o art. 331) pelo advento de Lei que não previu esse recurso (a Lei 9.868), parece absolutamente razoável e adequado hermeneuticamente concluir que o advento da Lei 8.038, na especificidade, revogou o art. 333 do RISTF, que trata de embargos infringentes em ação penal originária (na verdade, o art. 333 não trata de ação penal originária; trata a matéria de embargos infringentes de forma genérica, mais uma razão, portanto, para a primazia da Lei 8.038, que é lei específica). É o que se pode denominar de força pervasiva do comando constitucional previsto no art. 96, I, a, na sua combinação com o art. 22 da CF. Veja-se: um limita o outro. Se é verdade que se pode afirmar – como fez o STF – que normas processuais previstas em regimento interno são recepcionadas pela CF/88, também é verdade que qualquer norma processual desse jaez não resiste a um comando normativo infraconstitucional originário da Constituição de 1988. Isto porque, a partir da CF/88, um regimento interno não pode contemplar matéria estritamente processual. Ora, a Lei 8.038 foi elaborada exatamente para regular o processo das ações penais originárias. Logo, não há como sustentar, hermeneuticamente, a sobrevivência de um dispositivo do RISTF que trata da matéria de modo diferente.

Easy ou Hard Case?
Percebe-se, desse modo, que não estamos em face de um easy case, embora, na esteira de Dworkin e Castanheira Neves, não acredite na dicotomia easy-hard cases. Na verdade, o que determina a complexidade do caso é a relação circular que se estabelece entre a situação hermenêutica do intérprete e as circunstâncias que determinam o caso. Trata-se de uma questão de fusão de horizontes (Gadamer). Um dado caso pode parecer fácil porque o intérprete incauto se deixa levar logo pelos primeiros projetos de sentido que se instalam no processo interpretativo. Não há suspensão de prejuízos tampouco um ajuste hermenêutico com a coisa mesma (die Sache selbst). Assim, as diversas nuances e cores que conformam o caso escapam à compreensão d interprete e seu projeto interpretativo, inevitavelmente, fracassa. Por outro lado, por razões similares, um determinado caso pode se mostrar difícil em face da precariedade da situação hermenêutica do intérprete.

Sigo. Nenhum dos acórdãos do STF até hoje enfrentou questão envolvendo diretamente a superveniência da Lei nº 8.038/1990, que, efetivamente – e isso parece incontestável -, estabeleceu a processualística aplicável às ações penais originárias. E, acreditem, nem de longe estabeleceu o “recurso” dos embargos infringentes. Isto é, não há julgamento tratando da antinomia RISTF-Lei 8.038. No máximo, o que existe é menção, em obiter dictum, de que, em determinado caso, não seria caso de embargos infringentes (v.g., SS 79.788-ED, Rel. Min. Moreira Alves, DJ 1.2.2002).

Portanto, não estaríamos, neste caso, em face de um impasse hermenêutico? Indago: embora o STF diga – em um determinado caso que não é similar ao que estamos tratando – que as normas processuais estão recepcionadas, essa posição se manterá quando se colocar a pergunta: pode o RISTF sobreviver a uma Lei Ordinária, que, na sua especialidade (leia-se essa palavra no sentido técnico), veio para regulamentar a Constituição de 1988?

O papel do RISTF
Qual é o papel do RI do STF? Pode ele dizer mais do que a lei que regulamenta a Constituição? Pode um dispositivo do RI instituir um “recurso processual” que a lei ignorou/desconheceu? Sabe-se que o RI é “lei material”. Entretanto, não pode o RI tratar especificamente de “processo”.[1] Caso contrário, não precisaríamos sequer de uma reforma do CPC ou do CPP: o STF poderia tratar de tudo isso em seu Regimento Interno… Em outros termos, tornaríamos sem eficácia o inciso I do art. 22 da CF.

Mais: é possível admitir a sobrevivência (recepção?) de um dispositivo do Regimento Interno que vem do ancién régime, destinado, exatamente, a proporcionar, em “casos de então”, um reexame da matéria pelos mesmos Ministros, quando, por exemplo, era possível a convocação de membros do Tribunal Federal de Recursos? Hoje qualquer convocação de membros de outras Cortes é vedada. Logo, em face de tais alterações, já não estaríamos em face de um “recurso de embargos infringentes”, mas, sim, apenas em face de um “pedido de reconsideração”, incabível na espécie.

Como se vê, existem vários elementos complicadores à tese do cabimento de embargos infringentes em ação penal originária junto ao STF. Esses embargos infringentes previstos apenas no RISTF e que foram ignorados pela Lei 8.038, parecem esvaziados da característica de recurso. Tudo está a indicar que, o que possui efetivamente tal característica, é a figura dos embargos infringentes previstos no segundo grau de jurisdição, que são julgados, além dos membros do órgão fracionário, por mais um conjunto de julgadores que são, no mínimo, o dobro da composição originária.

Outro ponto intrigante e que reforça o hard case diz respeito ao seguinte ponto: pelo RISTF, a previsão dos embargos infringentes cabíveis da própria decisão do Órgão Pleno do STF necessita de quatro votos. E por que não cinco? E por que não apenas três? Quem sabe, dois? Ou apenas um voto discrepante? Por outro lado, seria (ou é) coerente (no sentido dworkiniano da palavra) que, em uma democracia, uma Suprema Corte – que, no caso, funciona como Tribunal Constitucional – desconfie de seus próprios votos? Não seria uma capitis diminutio pensar que o mesmo Ministro – vitalício, independente – que proferiu voto em julgamento em que podia, a todo o momento, fazer apartes, dar-se conta de que, ao fim e ao cabo, equivocou-se? Ou seja: um Ministro condena um cidadão que tinha direito a foro especial (privilegiado) e, depois, sem novas provas, dá-se conta de que “se equivocou”…

O risco do paradoxo
Mas, o conjunto de indagações não para por aqui. Pensemos na seguinte questão: para uma declaração de inconstitucionalidade – questão fulcral e maior em um regime democrático – são necessários seis votos para o desiderato de nulificação (de um ato normativo). Pois é. Mas, em matéria criminal, sete votos não seriam suficientes para uma condenação… (considerando que quatro Ministros votem pela absolvição). Indo mais longe: também seis votos (maioria absoluta), pelo RISTF, não são suficientes para colocar fim à discussão penal… Com isso, chega-se ao seguinte paradoxo: no Brasil, é possível anular uma lei do parlamento e até emenda constitucional com seis votos da Suprema Corte. Entretanto, não é possível tornar definitiva uma decisão que dá procedência a uma ação penal originária. Isto porque, segundo o RISTF, havendo no mínimo quatro votos discrepantes, cabe “recurso por embargos infringentes”.

Ora, no caso do processo civil, além de toda a teoria exposta, a resolução torna-se ainda mais simples, uma vez que há dispositivo legal que explicita a questão (não parece que seria realmente necessário), especificamente o artigo 1.214, que fala que “Adaptar-se-ão às disposições deste Código as resoluções sobre organização judiciária e os regimentos internos dos tribunais”.

Assim, parece interessante que examinemos essa problemática. Desde o caso Marbury v. Madison, tem-se a tese da rigidez Constitucional. Isso quer dizer que não é qualquer legislação que pode alterar a Constituição. E tampouco leis ordinárias podem ser alteradas por Regimentos Internos. Por isso, já que a questão das “lendas urbanas” está se proliferando – e digo isso com todo o carinho, até porque essas discussões fazem com que todos possam crescer -, lanço minhas dúvidas sobre esse hard case (cabem mesmo embargos infringentes nos processos criminais de competência originária, na medida em que a Lei que regulamentou a processualística – 8.038 – não tratou da espécie?).

Minhas reflexões são de índole constitucional-principiológica. Sempre escrevi que os julgamentos devem ser por princípio e não por políticas. Ou seja, julgamentos judiciais não podem estar baseados na subjetividade plenipotenciária do intérprete, tampouco no interesse de grupos ou ideologias. Julgamentos devem se fundamentar em princípio e sempre devem traduzir uma interpretação que apresente o melhor sentido para as práticas jurídicas da comunidade política. E, portanto, não devem ser ad-hoc. Isso quer dizer que o STF deverá, em preliminar, examinar a antinomia infraconstitucional e constitucional da equação “RISTF-Lei 8.038-CF/88”. Para o processo do “mensalão” e para os casos futuros. O STF terá que dizer se o seu RI vale mais do que a Lei nº 8.038/1990. Se sim, muito bem, legitima-se qualquer “recurso de embargos infringentes”; se não, parece que o veredicto do plenário será definitivo. Eis o hard case para descascar.

PS: não parece ser um bom argumento dizer que os embargos infringentes se mantêm em face do “princípio” (sic) do duplo grau de jurisdição, isto é, na medida em que um acusado detenha foro privilegiado e, portanto, seja julgado em única instância, isso faria com que o sistema teria que lhe proporcionar uma espécie de “outra instância” (sic). Com a devida vênia, esse argumento é meramente circunstancial e não tem guarida constitucional. O foro privilegiado acarreta julgamento sempre por um amplo colegiado, que é efetivamente o juiz natural da lide. Há garantia maior em uma República do que ser julgado pelo Tribunal Maior, em sua composição plena? Não é para ele, o STF, que fluem todos os recursos extremos? Um acusado “patuleu” tem duplo grau porque é julgado por juiz singular; um acusado “não-patuleu” (com foro no STF) não tem o duplo grau exatamente porque é julgado pelo colegiado mais qualificado na nação: o STF, em full bench. E não parece ser pouca coisa, pois não?


[1].Como bem dizem Nelson Nery Jr e Rosa Maria de Andrade Nery, cabem aos Regimentos Internos “o respeito à reserva de lei federal para a edição de regras de natureza processual (CF 22,I), bem como ‘as garantias processuais das partes “dispondo sobre a competência e o funcionamento dos respectivos orgãos jurisdicionais e administrativos’. São normas de direito processual às relativas às garantias do contraditório, do devido processo legal, dos poderes, direitos e ônus que constituem a relação processual, como também as normas que regulem os atos destinados a realizar a causa finalis da jurisdição.”(Cf. Constituição Federal aComentada, SP, RT, p. 465).

Clique aqui para assistir os vídeos do julgamento do mensalão.

Lenio Luiz Streck é procurador de Justiça no Rio Grande do Sul, doutor e pós-Doutor em Direito. Assine o Facebook.

Artigo publicado na Revista Consultor Jurídico, 13 de agosto de 2012

Augusto Nunes: Celso de Mello e os ‘marginais do poder’

augustonunesEm 1° de outubro de 2012, o ministro Celso de Mello justificou a condenação dos integrantes do esquema do mensalão com argumentos que transformaram seu voto numa peça jurídica histórica. No trecho gravado em vídeo, por exemplo, o decano do Supremo Tribunal Federal disse o seguinte:

Esses vergonhosos atos de corrupção governamental que afetam o cidadão comum ─ privando-o, como já se disse aqui, de serviços essenciais, colocando-os à margem da vida ─, esses atos significam tentativa imoral e ilícita de manipular criminosamente, à margem do sistema constitucional, o processo democrático. Esses atos de corrupção parlamentar significam, portanto, tentativa imoral e penalmente ilícita de manipular criminosamente, à margem do sistema constitucional, o processo democrático, comprometendo-lhe a integridade, conspurcando-lhe a pureza e suprimindo-lhe os índices essenciais de legitimidade, que representam atributos necessários para justificar a prática honesta, a prática honesta e o exercício regular do poder aos olhos dos cidadãos desta nação. Esse quadro de anomalia, senhor Presidente, esse quadro de anomalia revela as gravíssimas consequências que derivam dessa aliança profana entre corruptos e corruptores, desse gesto infiel e indigno de agentes corruptores, tanto públicos quanto privados, e de parlamentares corruptos em comportamentos criminosos devidamente comprovados que só fazem desqualificar e desautorizar, perante as leis criminais do país, a atuação desses marginais do poder.

Na próxima sessão do STF, caberá a Celso de Mello desempatar a votação sobre os embargos infringentes. O mais antigo dos ministros terá de decidir se os condenados que qualificou de “marginais do poder” merecem escapar da punição.

Por Augusto Nunes

Reinaldo Azevedo: Félix, o ‘novato’ do STF

barrosoefelixNesta quinta, Barroso desempenhou um papel um tanto melancólico no Supremo. Já tem uma boa coleção de vexames para vida tão curta na Casa (ainda chego lá). Nesta quinta, ele se excedeu. Acusou os que não votam como ele de aderir ao casuísmo e sugeriu que estão preocupados com as multidões, não em fazer justiça. E o fez num ambiente em que, de modo oblíquo, demonizou também a imprensa. Eu ouvia ali o eco das hostes petistas. Se Delúbio Soares fosse jurista, seria como Barroso. Se Barroso fosse sindicalista, seria como Delúbio Soares. Recebeu uma dura e necessária resposta de Marco Aurélio. Mas quero fazer algumas considerações antes de dar sequência a essa questão. Nota à margem: já escrevi sobre esse truque de criticar a imprensa para se blindar. “Seu eu falar mal deles, tentam provar que estou errado e me ignoram.” Pois é. Em muitos casos, funciona. Faço diferente. Quando um homem público fala mal da imprensa, tento provar que ele está certo na espécie, demonstrando por que ele não gosta muito de jornalistas…

Quando Barroso foi indicado ministro, resolvi ler um livro seu. Escolhi “O Novo Direito Constitucional Brasileiro”. Sempre que alguém se jacta de ser porta-voz do “novo”, eu — que, como toda gente, estou no mundo velho (ou alguém já vive o futuro?) — me interesso em saber onde está a novidade. Com alguma frequência, verifico que o que se diz novo não é bom e que o que se pensa bom, na verdade, não é novo. Mas eu estou sempre pronto para o surgimento de vanguardistas como Barroso. Li seu livro e escrevi vários posts a respeito antes mesmo de ele assumir. Os leitores que acompanharam sabem por que não gostei. Os motivos estão lá expostos. Alguns leitores disseram que eu estava sendo precipitado. Como haveria tempo de ele demonstrar que eu poderia estar errado, publiquei o que me desagradava. Até agora, fui apenas premonitório… Pareceu-me, como síntese brevíssima de uma penca de restrições, que Barroso é capaz de exaltar as glórias da tradição quando isso é do seu interesse e de esconjurá-la como expressão do atraso e do reacionarismo quando isso também é do seu interesse. Pareceu-me que ele pode oscilar de um literalismo aborrecido e estreito à interpretação mais lassa dos textos legais. E o que determina o apelo a um extremo ou a outro? Eis a questão.

Confesso que fico sempre com um pé atrás quando um juiz ou um professor de direito ataca o “legalismo”. Nada me tira da cabeça de que se trata de um rompante fora do lugar, porque, parece-me, a determinação de forçar os limites legalmente estabelecidos cabe aos agentes sociais. Um juiz não pode ser militante de uma causa que não seja a da lei. Não raro, os críticos severos do legalismo acenam com um mundo bem mais perigoso, que é o do arbítrio e o da idiossincrasia.

De volta ao caso
Depois de um voto sereno e técnico da ministra Cármen Lúcia; de um não menos técnico, mas muito contundente de Gilmar Mendes, Barroso resolveu pedir um aparte a Marco Aurélio, que também demolia a tese da sobrevivência dos embargos infringentes. E deu início a uma catilinária que, lamento dizer, era nada mais nada menos do que a voz das hostes petistas levadas ao tribunal, até nas críticas indiretas que dirigiu à imprensa. A exemplo dos “companheiros”, parece que o ministro não tem em grande conta o jornalismo — ainda que revele, no tal livro, já ter apelado a favores de conhecidos seus na área (mas deixo isso pra lá agora). Como toda catilinária, esta também era contra alguém — o seu “Catilina” eram todos aqueles que não votaram como ele. Mas Barroso não tem a modéstia de Cícero — por que teria, não é? Assim, aproveitou o ensejo — e isso não é nada raro em suas intervenções, também as por escrito — para se elogiar.

Ao demonstrar como é consciencioso, sério, corajoso e honesto, sem que tivesse sido acusado por Marco Aurélio de coisa nenhuma, disparou:
“Como quase tudo que faço na vida, faço o que considero certo. Sou um juiz que me considero pautado pelo que é certo, correto. O que vai sair no jornal do dia seguinte não faz diferença para mim (…). Fico muito feliz quando uma decisão do tribunal constitucional coincide com a opinião pública. Mas, se o resultado não for (coincidente), aceito a responsabilidade do meu cargo. Não julgamos para a multidão, julgamos pessoas.”

Ulalá! Na quarta-feira, ao ler o seu voto, não teve dúvida em classificar de “casuísmo” — nada menos! — a rejeição dos embargos infringentes, acusação repetida nesta quinta, com outras palavras. Com mais um pouco de entusiasmo, o ministro lastimaria mais as multidões e o povo do que o Félix da novela quando entra em boteco de pobre. Perdeu a medida. É evidente que, por contraste, acusava, então, aqueles que dele divergiam de estar preocupados apenas “com o que vai sair no jornal no dia seguinte”. Ao fazer tal observação, alinha-se com os brucutus que saem por aí tentando invadir órgãos de imprensa, acusando-os de ser parciais. É o mesmo espírito. Agride também, é evidente, a independência de seus colegas. Ocorre, meus caros, que esse texto de Barroso tem copyright; esse texto é de José Dirceu, é de Rui Falcão, é de Lula; é de Delúbio Soares. Ora… Quem dizia ser surdo à voz da multidão? Barroso? Justo ele? Direi daqui a pouco a razão do meu espanto meramente retórico.

EU, COMO POUCOS, JÁ REPUDIEI JUÍZES QUE OUVEM MULTIDÕES. MAS EU EXECRO AINDA MAIS OS QUE OUVEM OLIGARQUIAS. EU SÓ RESPEITO JUÍZES QUE OUVEM AS LEIS.

Marco Aurélio mandou brasa:
“Vejo que o novato parte para a crítica ao próprio colegiado, como partiu em votos anteriores, no que chegou a apontar que, se estivesse a julgar, não decidiria da forma mediante a qual decidimos. Estimado amigo Luís Barroso, nós precisamos nos completar. (…) Não respondi a Vossa Excelência sobre a crítica que, para mim, não foi velada, foi uma crítica direta, porque achei que não era bom para a instituição a autofagia. (…) Vossa Excelência [referindo-se a Barroso] elogiou um dos acusados”.

Marco Aurélio se referia a um dos momentos mais constrangedores da história do Supremo, quando o novo ministro, ao simplesmente recusar um embargo de declaração da defesa de José Genoino, cantou as glórias de alguém condenado por corrupção ativa e formação de quadrilha; que foi um dos principais protagonistas de um dos capítulos mais vergonhosos da história do país. Ele que elogie quem quiser. Que crie uma página na Internet para fazer seus panegíricos e confessar seus gostos (Taiguara, por exemplo). Que reúna os amigos num bar — longe da multidão, claro! — para expressar os seus afetos. Fazer, no entanto, o elogio a um condenado por crimes tão graves, por mais meritório que tivesse sido o passado deste (com o que não concordo, deixo claro!), é um acinte, um disparate, uma vergonha. CERTAMENTE O MINISTRO BARROSO NÃO ESTAVA FALANDO PARA SER OUVIDO PELAS MULTIDÕES. A QUEM FALAVA BARROSO QUANDO EXALTOU AS VIRTUDES DO CHEFÃO PETISTA?

Coragem?
Em tribunal em que estão Gilmar Mendes e Marco Aurélio, bater a mão no peito, quando se é Barroso, para dizer que não teme a multidão é prepotência imprudente, como todas. Alguém já viu um desses dois com medo do que vão dizer os jornais, as ruas ou as gangues organizadas na Internet? Ambos já passaram muitas vezes pelo corredor polonês da desqualificação por votar de acordo com o que consideram correto. A independência do “novato” ainda está por ser testada. No Brasil, quando se ocupa determinadas posições de poder, ser “independente” da “multidão” é até fácil; duro mesmo é ser independente dos oligarcas.

Vexames
Barroso fala sempre num tom bastante professoral e parece que bebe diretamente da fonte da sapiência. Mas lhe foi dado ter uma grande ideia no Supremo, e ele, na prática, criou a figura do parlamentar-presidiário sob o pretexto de preservar a competência das Casas Legislativas para cassar seus respectivos membros. Cometido o erro, resolveu corrigi-lo com uma liminar que merece a qualificação de patética: não apenas interferiu, então, num Poder que ele dizia imune ao juízo da Corte nesse particular, como tentou firmar a máxima de que só estariam cassados os mandatos daqueles cuja pena excedessem o que lhes sobrasse de tempo como representantes do povo — criação batizada pelo ministro Gilmar Mendes de “mandato-salame”. Sobra-lhe de imprudência retórica o que lhe falta de prudência técnica.

De volta ao povo
Estou aqui com o seu livro, todo anotado, aberto na página 131. Aquele seu ataque de Félix em boteco de pobre não se ancora no que escreve (ou, então, se ancora, mas de um modo muito particular). O homem que não é reverente a multidões, sugerindo que esse é um mal que atinge seus pares avessos aos infringentes escreve isto:

“O pós-positivismo [e ele ser quer um pós-positivista, tá, leitor?] é uma superação do legalismo não com recurso a ideias metafísicas ou abstratas, mas pelo reconhecimento de valores compartilhados por toda a comunidade. Esses valores integram o sistema jurídico, mesmo que não positivados em um texto normativo específico. (…) Além dos princípios tradicionais como Estado de Direito democrático, igualdade e liberdade, a quadra atual vive a consolidação do princípio da razoabilidade e o desenvolvimento do princípio da dignidade da pessoa humana”.

Parece que o professor Barroso acha que a “comunidade” tem algo a ensinar ao direito e aos juízes, não e mesmo? Parece que, também no voto sobre os embargos infringentes, ele deveria ter atentado para a questão da razoabilidade…

Ocorre, e já vou começando a concluir, que Barroso tem uma visão muito particular de “multidão” ou, quem sabe?, de opinião pública. O patrocinador das causas do aborto de anencéfalos, da união civil de homossexuais e da permanência no Brasil do terrorista Cesare Battisti (sempre contra o disposto em textos legais, é bom que se diga) parece disposto a acatar não “os valores compartilhados por toda a comunidade”, como escreve, mas aqueles compartilhados por grupos de pressão, que se pretendem a vanguarda do progressismo. A “multidão”, ele despreza como expressão do senso comum e do vulgo (o boteco em que Felix não bebe nem água). Já esses grupos de pressão seriam, sei lá, como forças a educar esse povo xucro que ousa falar em Justiça.

Em suma: ainda falta um povo à altura do ministro Barroso.

Por Reinaldo Azevedo

Nota do editor: o título original deste post, como pode ser lido na fonte, é “Ainda não temos um povo à altura do ministro Barroso. Ou: A impressionante coleção de vexames do “novato”

Josias de Souza: Após dar um salto, STF flerta com o descrédito

josiasthumbNunca antes na história de sua existência centenária o Supremo Tribunal Federal foi tão respeitado pelo contribuinte como hoje. No julgamento do mensalão, o tribunal fez o que todos imaginavam que jamais seria feito no Brasil: igualou o criminoso graúdo ao pobre-diabo.

Depois de corrigir a cegueira, regular a balança e afiar a espada, o STF decidiu desafiar a sorte. Por cinco votos contra cinco está empatada a votação que poderá representar o casamento do Supremo com a glória ou sua reconciliação com o descrédito.

Na sessão desta quinta-feira, quem melhor resumiu a cena foi Marco Aurélio Mello: “Sinalizamos para a sociedade brasileira a correção de rumos, visando um Brasil melhor. Cresceu o Supremo como órgão de cúpula do Judiciário junto aos cidadãos. Mas estamos a um passo, ou melhor a um voto de desmerecer a confiança que no Supremo foi depositada.”

Voltando-se para o colega Celso de Mello, Marco Aurélio cutucou: “Que responsabilidade, ministro!” É do decano do STF o voto que decidirá se os mensaleiros vão para a cadeia imediatamente ou se terão direito de interpor um derradeiro recurso –o embargo infringente—, que pode levar à redução de penas e até à prescrição.

“A repercussão que isso terá é incomensurável”, lamuriou-se Gilmar Mendes. Num chiste, Marco Aurélio insinuou que o Supremo está prestes a entrar na linha de tiro das ruas: “Vossa excelência fique tranquilo, ministro Gilmar, porque eu soube que os vidros do plenário foram blindados.”

Se a votação está empatada é porque o tribunal se dividiu quanto ao nó da questão: são cabíveis os recursos modificativos contra decisões do plenário do STF, espécie de Olimpo do Judiciário? Os partidários do ‘não’ dispõem de argumentos bastante  ponderáveis. O principal deles, exposto pela ministra Cármem Lucia e esmiuçado por outros colegas é o de que o STF passaria a ser o único tribunal superior a admitir os tais embargos infringentes. O STJ, onde são julgados, entre outros, os governadores de Estado, não os admite. No dizer de Marco Aurélio, “o sistema não fecha”.

Se é assim, pergunta a plateia aos seus botões, por que diabos a maioria dos ministros não opta pela solução mais lógica? Gilmar Mendes foi ao ponto: “Só há duas explicações possíveis para que as provas sejam reanalisadas pelo mesmo órgão julgador, ambas graves. Ou o trabalho custoso do já sobrecarregdo plenário é inútil ou joga-se com a odiosa manipulação da composição do tribunal”. E Marco Aurélio: “Talvez já não tenhamos o mesmo tribunal.”

Em debates como esse, a entrelinha por vezes grita mais do que a linha. O que Gilmar e Marco Aurélio disseram –sem declarar explicitamente— foi que os últimos ministros enviados por Dilma Rousseff ao Supremo deram ao plenário uma fisionomia mais, digamos, simpática aos mensaleiros.

Para usar expressões caras ao recém-chegado Luís Roberto Barroso: um julgamento que ficou “fora da curva” pode agora ser puxado para dentro da curva. Gilmar deu nome e sobrenome ao problema: José Dirceu. “O pano de fundo é a afirmação de que houve exasperação de penas. E o exemplo citado é a pena de 2 anos e 9 meses aplicada a José Dirceu no crime de quadrilha.”

Noutro julgamento recente, o do senador Ivo Cassol (PP-RO), Roberto Barroso e Teori Zavaschi alteraram com seus votos a maioria que se havia formado no julgamento do mensalão nas condenações por formaçõ de quadrilha. Com isso, o STF serviu a Cassol um refresco que, se forem aceitos os embargos infringentes, poderá ser estendido a mensaleiros como Dirceu, Delúbio Soares e José Genoino..

Gilmar iluminou a incongruência. No caso do deputado-presidiário Natan Donadon, os desvios foram de R$ 8 milhões e o pedaço da sentença relativo à formação de quadrilha somou 2 anos e 3 meses. No escândalo do mensalão, disse Gilmar, os desvios foram de R$ 170 milhões, e a pena de quadrilha imposta ao “chefe” Dirceu foi de 2 anos e 9 meses. Comparando um caso com o outro, arrematou Gilmar, o episódio Donadon deveria ser analisado por um “Juizado de Pequenas causas.”

Afora o desafio ao bom senso, a aceitação dos embargos infringentes forçaria o STF a admiti-los em todas as outras ações penais que já tramitam nos seus escaninhos. Marco Aurélio injetou na sessão uma dose de realismo fantástico:

“Só eu tenho mais de 200 [processos] na fila do plenário, aguardando espaço na pauta. Tenho um processo que liberei há mais de dez anos para julgamento. E isso é uma frustração para o julgador. Há alguma coisa errada. Mas queremos ficar com o disco arranhado na mesma faixa.” É contra esse pano de fundo que metade do STF votou pelos aceitação dos embargos infringentes.

Dono do voto que irá definir a parada na próxima quarta-feira, Celso de Mello deveria trocar no final de semana os compêndios jurídicos por um bom livro. Chama-se “Why Things Bite Back”. O autor é Edward Tenner. Há uma boa tradução para o português (“A Vingança da Tecnologia”, editora Campus, 1997). Tem 474 páginas.

A parte que mais interessa às togas do Supremo vai da página 22 à 25. Conta a experiência do major John Paul Stapp. Médico e biofísico, Stapp foi selecionado pela Força Aérea dos EUA como cobaia de testes para medir a resistência humana a grandes acelerações. Desafiou a velocidade pilotando um trenó com propulsão de foguete.

Em 1949, Stapp bateu o recorde de aceleração. Não conseguiu, porém, festejar o feito. Os acelerômetros do trenó-foguete não funcionaram. Desolado, Stapp encomendou ao engenheiro que o ajudava, o capitão Edward Murphy Jr., diligências para identificar a falha. Ele descobriu que um técnico ligara os circuitos do veículo ao contrário.

No relatório em que informa sobre a barbeiragem, o capitão Murphy Jr. anotou: “Se há mais de uma forma de fazer um trabalho e uma dessas formas redundará em desastre, então alguém fará o trabalho dessa forma”. Em entrevista a jornalistas, o major Stapp batizou de “Lei de Murphy” o diagnóstico do auxiliar. Resumiu-o assim: “Se alguma coisa pode dar errado, dará”.

Aplicada ao caso dos embargos infringentes, a “Lei de Murphy” ajuda a entender a atmosfera descrédito que ameaça o STF. Podendo decidir de duas maneiras, Celso de Melo insinua que votará junto com a metade do Supremo que preferiu ligar os fios do julgamento do mensalão ao contrário.0

(Por Josias de Souza, no Blog do Josias)