Mino Carta diz que vai processar quem remexer seu passado profissional

“De minha parte, estou farto de ataques: a partir de agora, processarei os caluniadores”. Com essa frase, Mino Carta, dono da revista Carta Capital, abre o último parágrafo de um texto em que, mais uma vez ,tenta se livrar da responsabilidade por textos que escreveu e orientou em Veja durante o início do seu potentado como diretor de jornalismo. 

Cadê o André Vargas no noticiário ?
Carta Capital: Cadê o André Vargas no noticiário ?

No texto, escrito em resposta a um artigo do Professor Demétrio Magnoli, Carta se gaba de ter mais autonomia sobre a o conteúdo da revista do que seus donos: “Eu gozava de notável autonomia: os donos da casa não tinham acesso à pauta e saberiam de cada edição depois da publicação, na manhã das segundas”. Mas se esquiva de toda a responsabilidade pelo apoio deslavado que a publicação, sob sua excelsa gestão,  emprestou não apenas ao golpe, mas também a algumas ações do DOI-CODI e até à famigerada OBAN. 

Na réplica a Magnoli, Carta, como de costume, põe o ponto inicial da história no período que se seguiu à eleição de Geisel, de 74 em diante, quando de fato Veja inicia um movimento de distanciamento do governo dos generais. Sobre tudo o que se passou no período mais obscuro e cruento da ditadura militar, Mino Carta se cala para não ter que explicar as loas que ele e a Revista Veja teceram ao regime.

A reportagem sobre a tortura que ele cita como prova de sua independência — e até mesmo repulsa — dos generais é, na verdade, um exercício explícito de sabujice. Não era a revista denunciando. Era Veja dizendo que Geisel não aceitava a tortura. Não era uma matéria sobre a tortura. Era uma matéria enaltecendo o ditador. Ainda assim, falava sobre a tortura, como de resto falavam jornais como o Estadão, que já haviam revisto sua posição explícita de apoio ao golpe em 1964.

Em sua ode a si mesmo, Carta transforma submissão em astúcia e audácia para explicar os afagos explícitos ao penúltimo general-presidente: “Tratado, porém, de forma que pretendíamos astuta, o terceiro ditador. Baseados no tom moderado do seu pronunciamento de recém-empossado, logo saímos com uma capa de chamada positiva, “O presidente não admite tortura”. Antes que uma informação, era ilação audaciosa””.

Mino Carta diz que vai processar “caluniadores” que revirarem seus textos. Aquele período da história que transcorreu entre 1964 e 1969 simplesmente não existiu na biografia do homem que se pretende o Gutemberg da ‘mídia nativa’. Escrever sobre o que ele escreveu, como fez Magnoli — e como eu mesmo fiz no começo dessa polêmica —  pode transformar um escriba de boa-fé em caluniador.

Ofereço a Mino Carta este texto como matéria-prima para sua investida judicial contra os ‘detratores’ de sua biografia. Não creio que ele irá adiante na empreitada porque é ridiculamente fácil provar que Mino escreveu o que escreveu. Embora ele negue, está tudo no arquivo digital de Veja, que é público e está à disposição de todos — até dele próprio, Mino Carta, que bem poderia nos ajudar a encontrar  qualquer texto de sua lavra com críticas à ditadura militar brasileira anterior à reportagem sobre a tortura .

Mino não as fez porque, como boa parte da imprensa brasileira, mudou ao longo do tempo. Enquanto os chamados ‘jornalões’ já fizeram a sua autocrítica — aliás, tão criticadas pelo ex-editor de Veja — falta a Mino grandeza para fazer o mesmo: pedir desculpas pelo que escreveu quando o Brasil mergulhava no período mais obscuro de sua história recente.

Mas não creio que Mino Carta irá fazê-lo. Porque dispõe de um pequeno exército de funcionários par defendê-lo, funcionários que, como ele mesmo diz, “chamam patrão de colega”. Não creio porque ele jamais admitiu que prestou todo tipo de apoio a Orestes Quércia, um dos mais notórios corruptos pós-64. 

Não creio porque, de resto, Mino Carta continua manipulando fatos, expurgando do noticiário o que não lhe convém ou não interessa a seus patrocinadores (oficiais, quase todos). Quer um exemplo disso ? Fácil! Entre no site de Carta Capital e procure alguma coisa sobre André Vargas, o petista salafrário que se associou ao pior da burocracia e a uma rede de  lavadores de dinheiro sujo para roubar o contribuinte. Não há nada, nenhuma menção ao larápio que dominou o noticiário brasileiro esta semana. Por que será ? 

Para que não digam que sou injusto na crítica, há um único registro, um ‘esforço de apuração’ materializado numa referência à reportagem de capa de Época neste fim-de-semana. Só isso. É assim que se faz o jornalismo com ‘controle social’ da mídia. 

Agora, que venha o processo!

Eu sei o que você escreveu ontem, por Demétrio Magnoli

“Os senhores escravocratas do século 21 ainda se movem ao sabor das crenças de 50 anos atrás (…)”, escreveu Mino Carta na revista “CartaCapital” do dia 2/4, para concluir: “Daí a oposição sistemática aos governos Lula e Dilma”. Na política, o passado é uma massa de modelagem sempre disponível para servir aos interesses do presente. Sugerir que os críticos do lulismo são reencarnações dos golpistas de 1964 já se tornou um clássico da “imprensa” chapa-branca. Quando, porém, a fábula emana do teclado de Carta, um cheiro de queimado espalha-se no ar.

masscara veneziana 

Nos idos de 1970, Carta ocupava o cargo de diretor de Redação da revista “Veja” e assinava os editoriais com suas iniciais. O que M.C. escreveu em 1º de abril de 1970, sexto aniversário do golpe, está no acervo digital da revista:

“Propostos como solução natural para recompor a situação turbulenta do Brasil de João Goulart, os militares surgiram como o único antídoto de seguro efeito contra a subversão e a corrupção (…). Mas, assumido o poder, com a relutância de quem cultiva tradições e vocações legalistas, eles tiveram de admitir a sua condição de alternativa única. E, enquanto cuidavam de pôr a casa em ordem, tiveram de começar a preparar o país, a pátria amada, para sair da sua humilhante condição de subdesenvolvido. Perceberam que havia outras tarefas, além do combate à subversão e à corrupção –e pensaram no futuro.” Fofo?

Enquanto Paulo Malhães lançava corpos em rios, M.C. batia bumbo para Médici. A censura não tem culpa: os censores proibiam certos textos, mas nunca obrigaram a escrever algo. Os proprietários da Abril não têm culpa (ou melhor, são culpados apenas pela seleção do diretor de Redação): segundo depoimento (nesse caso, insuspeito) de um antigo editor da revista e admirador do chefe, hoje convertido, como ele, ao lulismo, Carta dispunha de tal autonomia que os Civita só ficavam sabendo do conteúdo da “Veja” depois de completada a impressão.

Carta foi quercista quando Orestes Quércia tinha poder (e manejava verbas publicitárias). Hoje, é lulo-dilmista até o fundo da alma. Na democracia, não é grave ter preferências político-partidárias, mesmo se essas (mutáveis) inclinações tendem quase sempre na direção do poder de turno. Mas aquilo era abril de 1970, bolas! As máquinas da tortura operavam a plena carga –algo perfeitamente conhecido, não pelo povo, mas por toda a imprensa. A bajulação condoreira a Médici não deve ser qualificada como um equívoco de avaliação: era outra coisa, que prefiro não nomear.

“CartaCapital” de 2 de abril publicou, também, um ensaio histórico sobre as relações entre a imprensa e a ditadura no qual –surpresa!– não há menção aos editoriais da “Veja” assinados por M.C. em 1970. A revista de Carta faz coro com os arautos do “controle social da mídia”, eufemismo de censura em tempos de democracia. Cada um a seu modo, os grandes jornais acertaram as contas com o próprio passado, oferecendo desculpas (“O Globo”), reconhecendo erros (Folha) ou produzindo revisões circunstanciadas (“Estadão”). Carta optou por um caminho diferente: a camuflagem.

O artigo de Carta na “CartaCapital” é uma catilinária contra os “reacionários nativos” que, “instalados solidamente na casa-grande” e “com a colaboração dos editorialistas dos jornalões”, perpetraram o golpe de 1964. De tão santa e barulhenta, a indignação editorializada induzirá algum desavisado leitor estrangeiro a imaginar que o autor denuncia, corajosamente, um golpe militar em 2014. Mas, no fim, é mesmo do presente que trata o grito rouco, o adjetivo sonante e o chavão escandido: por meio dessas técnicas, Mino Carta esconde M.C.

Acervos digitais são uma dessas maravilhas paridas pela revolução da informação. A França do pós-guerra não tinha algo assim, para sorte dos colaboracionistas de Vichy. O Brasil de hoje tem. Sorte nossa.

 

Demétrio Magnoli, doutor em geografia humana, é especialista em política internacional. Escreveu, entre outros livros, ‘Gota de Sangue – História do Pensamento Racial’ (ed. Contexto) e ‘O Leviatã Desafiado’ (ed. Record). Escreve aos sábados na Folha de São Paulo (clique aqui ara ler o link no endereço original.